sexta-feira, 28 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

7ª Parte

Não poderia ali ficar, esperando que ela viesse de encontro a si e aos seus braços, na esperança de que num dedilhar de harpa os seus dedos se tocassem para um novo bailado que os embalaria até ao nascer da estrela diurna.

Caminhou, então, pensativo sobre a lassidão sorridente que lhe acenava dos belos rostos ansiosos do toque dos seus lábios. Não os desejava. Só aqueles ternos fios dourados clamavam por si, só aqueles olhos de safira o encantavam. Sim, desejava já aqueles lábios rubros, aquele frio que o aquecia...

Saiu para o jardim mergulhado nas trevas tão crescentes e abundantes. Os seus olhos tão ou mais negros que a noite percorreram-no, trespassando hipócritas fontes angelicais e densas sebes que se espalhavam, formando trilhos que encaminhavam os convidados para recônditos distantes. Recônditos inesperadamente perigosos. Um ser (homem ou mulher, o que interessava?) palmilhava-o, afastando-se na imensidão que era o seu eterno domínio. Afastando-se do que não quereria perder tão cedo.

Seguiu-o com passos leves. As suas veias palpitavam por ele numa ânsia retumbante. Banhar os lábios na vida que escorria fresca para si seria um prazer. E o que pintaria ele nessa noite?

A sua consciência desvaneceu-se para algures. Uma bela jovem limpava as intimas lágrimas escarlates que se vertiam impiedosas, de desgosto, de raiva, de desprazer...

Hesitante voltou-se para trás, porém não a encontraria. E se encontrasse, a donzela fugiria novamente. Escapar-se-ia dos seus braços aquela frágil papoila... Sim, papoilas! Um enorme campo de papoilas vermelhas, tal como as suas doces lágrimas ou os seus deleitosos lábios. Tão efémeras quanto ela. Como se deliciaria o seu pincel ao delinear aquela forma num canto triste de rouxinol!

Reencaminhou-se novamente pelo trilho que serpenteava na escuridão. Nos seus lábios bailava, agora, um sedutor sorriso, mais que mortal, mais que felino. Um sorriso de belo anjo caído.

sábado, 22 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

6ª Parte

A donzela afastava-se, bela e misteriosa Cinderela, da qual nem o sapatinho tinha como pista. Ainda sentia a sua mão delicada, de finos dedos translúcidos, as veias azuis sobressaindo delicadamente, como se sentindo saudades do sangue batendo com o fulgor da adrenalina, do desejo, da raiva.

Temia-o? Na sua mente surgiu a imagem de um corpo exangue, jazendo no chão pútrido de uma qualquer ruela da majestosa Praga, sem uma gota a raiar-lhe a pele descolorada. Ah, como a sua mão ansiava pelo pincel, pela tela em branco tornada cor, sonho, realidade pintada em sangues! Abanou a cabeça; ainda não estava na hora.

Deslizou pelo salão, sorrindo delicada e deslumbrantemente a damas, tornando-as capazes, seres nocturnos e aveludados, de suspirar de angústia desejosa. De inveja. De curiosidade. Porque raros eram os que sabiam já o seu nome, embora cresse que, ao final da noite, os murmúrios inquiridores já houvessem percorrido, por inteiro, o local.

Não lhe apetecia dançar mais, iria apenas conspurcar-se ao tocar numa qualquer mulher lasciva, de mãos que ambicionavam mais do que aquilo que desejava dar. Passou a língua pelos dentes, pensativamente, enquanto se encostava a uma coluna, encobrindo-se nas sombras, fitando a multidão pálida. Os olhos de obsidiana não viam, porém, os seres da sua raça, mas pedaços de quadros transpostos para o agora, efervescentes figuras personificando músicas, acordes insonoros de violoncelos de cordas soltas. Sim, e potros palmilhavam de pegadas ainda não ferradas as paisagens de mares vermelhos.

Sentiu-se corroído pelo desejo mórbido, e por pouco não cravou os dentes no criado que se roçou em si, propositadamente, enquanto transportava bebidas. Raios. Onde estaria a tal rapariga?

domingo, 16 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

5ª Parte

E como eram suaves os seus passos, os seus revolteares intensos por entre os violinos que se enterneciam ao som de uma valsa fúnebre!

Adamina tentou perscrutar aquele negro enigmático que se antevia por entre pestanas densas que poucas vezes se cerravam. Perguntava-se quem seria. Nunca antes se cruzara com o cavalheiro desconhecido. Pertenceria a um outro país?

- Nunca antes os nossos olhares se cruzaram pois o destino o impediu – murmurou-lhe o jovem com um leve mas significativo sorriso, dando a conhecer os pensamentos a que a jovem não dera voz.

O pouco sangue que as suas veias transportavam dera-lhe um aspecto mais vivo, quando a sua face corou um pouco, apesar de ser o máximo que a sua palidez oferecia. O homem de negro riu-se baixinho sem deixar de guiá-la delicadamente pelo salão.

- O senhor...

- Não – declarou, sem deixar de observá-la. – Simplesmente o pressenti no seu tão atento olhar. Atento e belo.

No preciso momento em que Adamina desviou o olhar, a música parou. Há quanto tempo um elogio aos seus olhos não revibrava no seu espírito magoado? Oh! Ela sabia quantas eram as horas, quantos eram os dias, quantas eram as semanas infindáveis... batiam no seu peito aquelas chagas abertas.

O homem fitou incrédulo a reacção inesperada. A intenção das suas meigas palavras tinha ido além do previsto. Mas não percebia o porquê.

- Por favor, perdoai-me – implorou. A mão da jovem continuava junto à sua, no entanto, sentia que seria por pouco mais tempo. – Não quis ofendê-la.

- Não me ofendeu – murmurou Adamina com um vago sorriso que desfalecia. – Perdoe-me o senhor a minha indelicadeza. Com a sua licença.

A sua mão largou por fim a do belo homem, que se retraiu com uma desilusão educada. Com uma pequena vénia de despedida, Adamina afastou-se, por entre os pares que antes bailavam a sua dança fluida, para uma proximidade indefinida de encontro à sua solidão.

terça-feira, 11 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

4ª Parte

O ruído do salão, pejado de seres pálidos, inumanos, figuras saídas de sonhos - ou pesadelos -, bafejou-lhe o delicado rosto, como um suspiro de um amante. Fechou, momentaneamente, os olhos, enquanto, em conjunto com o seu pai, era apresentada aos presentes, por um mordomo de ar empertigado, que quase se poderia imaginar empoeirado.

Uma mão segurou a sua, delicadamente, o que a fez erguer as pálpebras, destapando as formosas íris para o sonoro ambiente, desejando sentir o silêncio e a tranquilidade, tomando-os nos seus braços ansiosamente, na sua solidão. Ela, o sossego e a escuridão.

- Senti-vos bem, senhora? - À sua frente, segurando-lhe a mão enluvada, com a preocupação cintilando-lhe no carvão dos olhos, encontrava-se um homem elegante, de brilhantes cabelos negros. O seu coração contraiu-se numa recordação surda de Raphael. - Precisais de um copo de água?

Adamina abanou a cabeça, suavemente, fazendo balouçar os fios de luz dourada. O cavalheiro em frente a si sorriu, curvando-se numa vénia graciosa, beijando-lhe, docemente, a luva, ostentando como ornamento um sorriso feito de pedaços de lua.

- Permitis-me então que vos convide para uma dança? - Na pista, os pares terminavam os seus volteares sincronizados, por entre aplausos que abafavam os acordes últimos da melodia que se afigurava, à dama, deslocada, sem se adequar ao negro e escarlate das vestes da maioria dos presentes.

Ainda assim, acedeu ao pedido do senhor - que não aparentava ser muito mais velho que ela própria. Mantendo os lábios distendidos num cumprimentar ao prazer, ele conduziu-a para o centro do salão, onde nova música começava a tomar lugar. Com uma delicadeza extrema, ele colocou uma mão na sua cintura, apertando a outra na sua, quase como se não houvesse outra salvação daquele mar de corpos senão o toque da jovem dama.

E era num mar de corpos que se moviam, ondulantes como ondas coordenadas do mesmo escuro e tenebroso oceano, numa elegância inimaginável a olhos humanos.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

3ª Parte

Fechou as cortinas aveludadas, antes do interior do coche sentir uma pequena mas inamovível inclinação para cima, como se tentasse elevar-se até ao céu nocturno. E como desejava poder tocar-lhe, ou talvez cair na latente harmonia dos anjos! No entanto, aquilo só uma coisa significava: estavam a chegar ao seu derradeiro destino.

Um alto e austero palácio espera-los-ia no fim da calçada intrépida, um retrato erguido de uma qualquer imagem aterrorizante. Ou seria a sua alma que a iludia e criava aquela figura que parecia querer devorá-la avidamente? Talvez fosse, definitivamente, só isso.

O trote dos cavalos foi abrandando, e o coche parou por fim com um solavanco pouco suave. Um dos cocheiros apressou-se a abrir a porta, veneradamente, para que descessem. Seu pai segurou-lhe na pálida mão e Adamina pôde sentir uma frieza tão igual mas tão diferente da sua. Gostaria que a sua mãe estivesse presente para a amparar na sua solidão. Perdera a única pessoa que realmente detinha carinho por si, perdera Raphael...

- Sorri – ordenou-lhe seu pai, guiando-a para as altas portas do palácio de braços dados, com passadas lentas e elegantes dignas da alta nobreza a que eles pertenciam.

Adamina tentou, mas a única coisa que sentiu foi um esgar que lhe feriu a face e lhe levou lágrimas contidas aos olhos. Não podia continuar assim para toda a eternidade, em parte o seu pai tinha razão. E lá bem no fundo, sabia que ele se preocupava consigo.

As portas abertas receberam-os solenemente, apesar de serem muitas as luzes que lhes iluminava a serpenteante carpete vermelha que os levaria ao grande salão onde o anfitrião e os convidados aguardavam a chegada dos restantes.

Caminharam, olhando em frente de forma segura. Ou assim fazia seu pai. Adamina observava os retratos que acompanhavam a sua passagem. Sentia-os diferentes do normal. Eram densos. Tinham alma...

Os seus pés pararam de caminhar, hipnotizada pelo labirinto de imagens que se espalhavam ordenada e hierarquicamente por uma inclinada e verde colina. As suas vestes eram antigas, provindas de séculos passados, algures perdidos nos confins de Belém ou Jerusalém. No cimo da pequena ladeira uma pequena e raquítica cabana erguia-se insegura no frio gélido que se passeava sem entraves por todos os seus interstícios de pobreza. No seu interior, uma mulher de beleza simples mas delicada guardava nos braços um frágil embrulho em suaves e brancos panos de linho, envolvido. Uma mãozinha erguia-se do seu interior, tentando alcançar alguns dos fios de cabelo que se escapavam do véu que os guardava. Por cima da cabana uma luz reluzia no seu esplendor divino. Mas que divino seria aquele? O seu reluzir sentia-se suavemente luciferino.

Tentou aproximar-se para observar com maior pormenor aquela grande tela emoldurada. Mas o braço de seu pai impediu-a, relembrando-lhe de onde estava, chamando-a a si e ao seu mundo que nem deveria ser seu.

- Desculpe – murmurou, mas talvez se dirigisse ao menino Jesus na sua cabana friorenta, e não ao pai. Fora a ele que perscrutara sem permissão, nos seus perfeitos pormenores. Merecia o seu pedido de perdão.

Sentiu-se a ser semi-arrastada por aquele corredor largo de paredes pálidas. Inexoravelmente, a cena sagrada afastava-se de si, assim como Ele o fizera.

sábado, 1 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

2ª Parte

Pela janela do coche, o mundo escoava-se em tons cinza, preso pelos traços das lâmpadas a óleo que iluminavam as ruas degradadas e sujas, repletas da imundície que inundava o pavimento. Poucas eram as pessoas que ainda percorriam as ruas, a maioria coberta com capas como se para se proteger do que a rodeava, para se proteger do mundo.

Com um suspiro, desviou os olhos do vidro. Cada face que avistava, por mais suja, desfigurada, por mais retorcida pela dor ou - mais raramente - pelo êxtase que estivesse, a recordava do seu amante fugido. Mordeu o rúbeo lábio inferior, quase sentindo as salgadas gotas inundar os seus cativantes olhos. Era um ser das trevas, afinal de contas. Não se permitiria chorar. Mas ele abandonara-a, naquela noite em que o esperara tão avidamente, em que o desejara, mais que nunca, nos seus pálidos braços. Traíra-a, partindo com outra mulher. Haviam ambos desaparecido na mesma noite, e ela não duvidava que estavam juntos, agora, embalando-se sob o mesmo veludo bordado a estrelas.

Suspirou, amarguradamente, um suspiro que faria corações humanos estremecer de prazer. Como ela já estremecera, abraçada pelo seu amado Raphael, que ousara dizer, com uma aterradora certeza, que a protegeria ad infinitum. Até ao final dos tempos, dissera, com a sua doce voz. E, agora, tudo isso se dissolvera.

Abstraindo-se do cenário lá fora, fitou o interior forrado de veludo do coche. O seu pai não a olhava, os seus frios olhos azuis mirando as sombras no exterior. Estava, como sempre, impecavelmente vestido e penteado; ninguém teria dúvidas quanto ao facto de serem parentes. Ela, contudo, tinha-as, por vezes. Incompreendia a rigidez quase militar dele, o seu modo gélido de se dirigir a todos, a forma como punia os que lhe desobedeciam. Era como o gelo, de uma beleza assassina. Sim, porque, até ela o admitia, era belo, deslumbrante, até, e qualquer mortal, homem ou mulher, perdia o fôlego ao pôr os olhos na sua figura esbelta, nos seus compridos cabelos que lembravam uma cortina de fios de ouro, os olhos diamantes azulados.

- Adamina? - Não a olhara sequer.

- Sim, pai?

- Sabes o que espero de ti esta noite, não sabes?

- Sim, pai. - O seu tom era submisso; de nada lhe valeria contrariá-lo.

Ela sabia o que ele esperava dela, claro. Que não o envergonhasse, que não referisse o facto de ter amado um humano, e que, sobretudo, tentasse encontrar um noivo. O oposto de Raphael: um vampiro.