domingo, 27 de abril de 2008

Capitulo II - O Retrato

1ª Parte

Olhou desatentamente a luva que repousava no seu colo, e absteve-se de suspirar, sabendo que o seu pai não aprovaria tal acto.

- Já era altura de mandar pintar o teu retrato, - dissera-lhe, na noite anterior. Haviam passado dois dias desde o baile, desde que ela partira numa corrida apressada para longe do cavalheiro que a tomara nos braços para uma dança. - Mandei vir o melhor pintor de Praga, chegará amanhã.

A tradição de família que nunca compreendera, de pintar um retrato de cada membro, nunca, até agora, a havia transtornado - a si ainda não lhe fora pedido que posasse. Mas, naquele momento, enquanto esperava o pintor que seu pai chamara, Adamina passou a mão pelo cabelo sedoso, exasperadamente, irritada no seu âmago por ceder a tal ordem. Quanto tempo teria de suportar até o retrato estar pronto; quantas horas de prolongado tédio e (caso não fosse já um falecido ser) mortal aborrecimento?

Seu pai ordenara que vestisse veludo, porque fora de veludo que todos os membros da sua família haviam sido retratados. Assim, o vestido negro caía em pregas suaves em seu redor, enquanto aguardava. Lançou uma mirada aos quadros da Sala dos Retratos. Pinturas de seus antepassados olhavam-na aprovadoramente, com olhos gélidos e poses altivas. Prestou atenção, pela primeira vez, ao quadro de seu pai. Nunca se apercebera de quão bem representado ele estava, transparecendo a sua frieza mesmo através de simples tinta, mostrando, de forma quase real, a sua natureza de comando. Olhando para o retrato e o homem, diria que o primeiro era uma impressão do segundo.

Estremeceu inconscientemente ao ouvir as batidas na porta da sala, mas era a governanta com chá. O seu pai dispensou-a, sem uma palavra, mas Adamina percebeu: não iriam tomar nada enquanto não chegasse o pintor.

A sua mente vagueou, quase sem se aperceber, para o cavalheiro da noite do baile. Assustara-se com a capacidade dele para a atordoar, para a fazer sentir algo que não sentia há... tanto tempo. Todas as noites eram um suplício, repletas de calafrios de saudade e angústia, que abafava quando se encontrava com o pai ou qualquer outra companhia, esforçando-se por que não transparecessem. Mas aquele homem fizera com que sentisse de novo o aperto semi-doloroso mas cheio de prazer que tinha sempre que estava com Raphael. Oh, quem seria? Como lhe faria ele tal coisa?

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Capítulo I - O Pintor

9ª Parte
O fluído morno enrubesceu-lhe os lábios, cedendo-lhe um prazer sublime que nem os deuses sem gosto poderiam saborear. Os seus dedos magros e pálidos deslizaram por entre os negros fios de cabelo da sua vítima, afagando-os amavelmente, enquanto se banqueteava naquele doce mel que aos poucos desgastava os seus sentidos numa letargia morna.

Ao finalizar o seu passeio pelos inúmeros trilhos que o gosto sanguíneo poderia tomar, ergueu o rosto para o céu, permitindo que a sua língua absorvesse os resíduos dos seus lábios agora escarlates e quentes. O luar iluminou a perfeição que lhe fora tão generosamente oferecida, as linhas eternas que formavam a sua fronte sem ruga alguma.

Voltou a sua atenção para o gracioso corpo da donzela, que morto repousava nos seus braços. Abençoado fosse o seu sacrifício, pensou, com alguma ironia, enquanto sorria ao observar a sua face arredondada, os olhos semi-abertos que já nada fitavam para além do vazio que formava o tudo num colapso que se comprimiu em demasia.

Curvou-se e depositou-lhe um pequeno beijo na frieza que era já o seu invólucro. A vida era agora sua, por meros e escassos instantes que fosse. E nesses meros e escassos instantes muito tinha a fazer, o pincel clamava mais alto no seu estúdio, chamando-o até si, irresistivelmente. Mas antes, tinha outro assunto a tratar.

*

Aproximou-se da margem do apressado rio Vltava. Ainda nos seus braços a adormecida donzela, esperava pela sua sepultura incerta. Pousou-a no chão relvado, aqui e acolá ponteado por flores adormecidas. Faltava um último e delicado pormenor.

Com suavidade, levou um dos pulsos da morta à boca. As suas aguçadas e belas presas afagaram a fina pele que lhe cobria os vasos sanguíneos, enquanto os lábios sentiam as rudes linhas que tracejavam a sua pele. A pele “dela” nunca seria assim.

Por fim, rasgou-a com um gesto rápido. O suicídio era tão vulgar entre nobres jovens descontentes com o seu futuro noivo, ou perdidas de amor por alguém que as rejeitava…

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Capítulo I - O Pintor

8ª Parte

Ah, já sentia o rubro sangue, a translúcida pele de azuis veias sob os seus lábios - rubis em beijos! Foi percorrido por um frémito de arrebatamento, torturado pelo desejo de lançar suas mãos num pincel, de escorrer a sanguinolenta tinta pela paleta.

Portanto avançou, os seus pés mal pisando a gravilha que parecia abrir caminho ante si. O aroma das flores do jardim envolviam-no como seda invisível, albergando em si doçura tal que quase suspirou de êxtase. Mas o verdadeiro prazer ainda tardava, conquanto que não muito.

Cravou as unhas na palma das mãos, enquanto seguia o vulto que caminhava à sua frente. Conseguia cheirá-lo, agora. Uma mulher, exalando um perfume penetrante, ainda que doce. Sentia-o preenchê-lo, mas não completamente. Faltava-lhe algo, cria. Algo que rejeitaria o que fazia naquele momento, algo - ou alguém. Sentiu outro cheiro, algo que o eriçou, que o fez arder interiormente. Mas o que cheirava era apenas uma reminiscência do que ainda desejava para si.

Concentrou-se de novo na presa à sua frente. Os passos eram pesados, arrastados, como se carregasse em si um peso equiparável ao de Atlas. Óptimo. Encarregar-se-ia de a ajudar a sentir-se mais leve. Nunca Caronte deixara ninguém atravessar o seu rio carregado.

Antes ainda que a mulher ouvisse os seus passos, o seu vulto, não mais que uma sombra, abateu-se sobre ela. Antes ainda que ela conseguisse clamar por ajuda, ele já lhe cravara os dentes, num beijo último, no esbelto pescoço. Antes ainda que ela conseguisse vê-lo, estava morta. Definitivamente.

O sabor férreo do sangue enchia-o de sensações tão conhecidas como os seus pincéis, as suas pálidas telas, mas, contudo, tão estranhas para si como o correr ignóbil da vida em si. Oh, há quanto tempo não sentia o pulsar do coração. Durante alguns melancólicos momentos, contemplou, sem ver, o corpo exangue da sua vítima. Honrada, era como se deveria sentir, acaso pudesse. Nem todos eram tintas de perfeitos quadros.