domingo, 14 de fevereiro de 2010

Capítulo II - O Retrato

8ª Parte

O pintor não olhou directamente para si, os olhos perdendo-se na porta acabada de se encerrar, como se erguida uma muralha entre aquele compartimento e toda a restante moradia. E aquela muralha cercava-os, retendo-os presos no seu inato, durante uma hora que mal se iniciara.

- Mantenha o seu sorriso, doce senhora, que irei iniciar a minha obra – pediu, num sussurro calmo, todavia um sussurro onde estava encoberto o desejo de ir mais além e prender naquela sua tela, mais do que um mero sorriso, mas toda a essência de uma alma. – Permita-me desfrutar da minha arte, nesta efémera hora, o que nunca poderei desfrutar em toda a vida que não possuo. E poderá assim vosso honrado pai permitir que mais floreios sejam eternizados a tinta, pelo pincel que seguro e que só anseia retratá-la, nobre donzela.

O que almejava Amapoullo, com tais ditos, esses sim tão pintados, se disfarçados, nas cores com as quais a retrataria? Os cantos dos lábios ergueram-se suavemente, enquanto os olhos novamente se dirigiam à luz alaranjada do candeeiro, que tremeluzia esporadicamente, açoitada por uma brisa cadente de inexistente. Fora isso que pedira, anteriormente. Inspirou profundamente, tentando ocultar o nervosismo, no entanto o ar inspirado deteve-se no interior dos pulmões, quando novamente o pintor se lhe dirigiu.

- Sorria, mas olhe para mim. – Aquela abrupta mudança de vontades, tão inesperada, destabilizou-a ainda mais. Não desejava fitar aqueles orbes de obsidiana. Ou desejava. Porém, temia que pudesse o pintor vislumbrar os seus pensamentos, retratando-os na sua tela, em vez de pintar o que era devido e pedido, senão ordenado. Que lhe estava ele a fazer, tornando as suas escolhas tão incrivelmente dolorosas?

Não demonstrou os pensamentos latentes em si, quando o seu rosto ebúrneo se voltou para ele, um sentimento pululando dentro do coração que não pulsava, ao absorver toda aquela enigmática beleza.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Capítulo II - O Retrato

7ª Parte

Antes que o fôlego de que não precisava a abandonasse, seu sisudo pai falou, a voz cortando rajadas gélidas de ar pela sala perdida no tempo. — Ela saberá comportar-se de modo a aquietar-se. — O olhar cru pousou sobre a filha, e Adamina sentiu o coração que não batia estremecer. — Não é um qualquer animal de rua com o sangue vivo nas veias. — Era assim que se referia a humanos.

O pintor pareceu não vacilar, e dirigiu ao senhor uma vénia singela e de reconhecimento. — É certo, seria impossível encontrar beleza tal entre os homens, senhor. Mas ser-se um ser da Noite não é fenecer completamente para o mundo, como estou certo que a vossa sabedoria compreenderá, e a donzela é pois jovem e irrequieta como é próprio da idade.

A ousadia da sua voz era apenas comparada com a das suas palavras, que pareciam ignorar a sua presença. E como preferiria estar em outro lugar, se no seu quarto estaria mais segura dos olhares entre aqueles dois seres argutos e de almas calculistas, cada um desejando algo diferente para si. Oh, doce Raphael, que se perdera para ela, com as palavras meigas de salvador cavaleiro em branco corcel.

Susteve-se na cadeira: seu pai acedia; um aceno seco e desprovido de compreensão, mas um aceno. — Ser-vos-á cedida uma hora a sós, senhor. Nada mais. — Se não a disse, não faltou do seu tom sombrio a ameaça desvelada e austera. Uma promessa, Adamina garantiria.

Amapoullo sorria, se pouco sério não pôde distinguir, à luz do candeeiro, mas como o faria em frente ao homem que o ameaçava com tamanha clareza? O sorriso alargou-se quando a porta se fechou, com firmeza, e a solidão que os rodeava embraçou-a de imediato, sussurrando-lhe um arrepio.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Capítulo II - O Retrato

6ª Parte

Adamina foi percorrida por um arrepio, vindo algures de um ponto remoto da sua alma, tão mergulhada dentro de um coração encerrado ao mundo. Respirou profundamente, apesar de querer que o acto passasse despercebido a seu pai e ao estranho pintor que a observava e estudava, de fino pincel erguido em direcção à tela ainda em branco.

Deixou que a atenção se perdesse na chama clara do candeeiro que tremeluzia e se agitava nas vagas de uma brisa inexistente, dançando o bailado que na noite passada dançara com Amapoullo, enquanto o sorriso se mantinha pétreo nos lábios rubros que lembravam sangue.

Agora, adoraria que aquele retrato fosse pintado à luz de um Sol primaveril, ao som tão agudo e estridente que as aves canoras conseguiam imitar, pouco sinfónico mas alegre e vivo, tal como ela almejava estar.

- Senhora, por favor, mantenha o seu tão doce sorriso. Só assim a sua esbelta figura resplendecerá neste simples pedaço de tela.

Corou, sem se atrever a fitar o pintor, obrigando os cantos dos lábios a erguerem-se um pouco, num esforço que parecia superar tudo. Porquê fingir, se não era sua vontade sorrir? As mãos que repousavam no colo, apertaram-se uma de encontro à outra, tensas daquela atmosfera que ousara conhecer. Sentia múltiplos olhares cravarem-se em si, de familiares há muito caídos nas garras do tempo que se ergue sobre todos. Julgavam-na, disso não havia qualquer dúvida e se a condenavam, nenhum se atrevia a proferir pena perpétua. E, por alguma razão, o seu pai parecia ser o que mais a sentenciava, tanto em retrato, como em figura viva. Ou morta.

- Perdoai-me a ousadia, senhor, mas importai-vos que fique a sós com a vossa filha? Sinto-a inquieta e um modelo assim é impossível de se pintar na sua perfeita elegância.

A estupefacção espalhou-se pela face pálida de Adamina, que desta vez atreveu-se a olhar do pintor para o pai, com receio da reacção deste último. Aquilo era um pedido mais que ousado.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Capítulo II - O Pintor

5ª Parte

Adamina fechou os olhos ao tomar lugar na cadeira onde seria retratada; veludo carmim, debruado a ouro, com belas franjas que drapejavam até ao chão marmóreo. Sentia-se inibida em sua casa, e a culpa era, pois, da presença de Amapoullo. Era ele que fazia fraquejar as suas pernas, era ele que fazia com que o tempo esticasse e encolhesse a seu bel-prazer, era ele que sorria candidamente e que a hipnotizava. Oh, belos olhos negros da cor do fim do mundo.

— Senhora, poderia pedir-vos que vos sentásseis encarando o candeeiro? — A sua voz aveludada deslizava por si e arrepiava-a. — Gostaria de ver vossa excelsa face iluminada.

Sem palavra, Adamina aquiesceu, com um ínfimo suspiro. Rodou no lugar para receber a luz no rosto. Sentisse frio, diria que era por isso que tremia. Mal reparou em seu pai, fitando-os austeramente, de corpo hirto e direito, os olhos obscurecidos pela sombra onde se encontrava. Naquele momento sentiu uma indecisão apoderar-se de si. Metade do seu ser queria que o pai permanecesse onde estava, que não se afastasse dali, que a não a deixasse só com aquele ser, aquele encantador. Tinha medo, sabia-o, mas não compreendia a razão. No seu âmago, contudo, queria que o pai os deixasse, que partisse, que não voltasse, queria ser tomada nos braços níveos e maravilhosamente frios do homem que espalhava as tintas pela paleta, o cavalete montado à sua frente, o sorriso perfeito nos perfeitos lábios.

Conseguiu forçar os seus olhos a moverem-se, hesitantes, a olharem a sala que sempre quisera conhecer mas que, naquele momento, se eclipsara da sua atenção, tão pouco importante quando comparada com o soberbo ser diante de si. Os retratos olhavam-na do alto, com feições tão altivas quanto a do seu pai, tão belas quanto a sua. Nenhum dos posantes que emprestavam o corpo às pinturas sorria; era como uma severidade presente e constante que percorria a sala. Não ousou, ela mesma, sorrir.

Contudo, o artista tinha outra vontade. — Senhora, dar-me-ia o prazer de sorrir?

Pensou que o seu pai interviria para o impedir de lhe pedir tal coisa, que tal não se adequaria à Sala dos Retratos, mas ele permaneceu silencioso e sisudo e Adamina sorriu, ou tentou fazê-lo. Emprestou os seus dentes à luz, ergueu os cantos dos lábios, tentou até fingir alegria, mas para um pintor, cuja arte mostra a alma, uma fachada não serviria.

sábado, 1 de novembro de 2008

Capítulo II - O Pintor

4ª parte

O pintor de juventude indescritível estendeu-lhe a mão enluvada, para, numa cortesia que resplandecia na sua beleza, a auxiliar a erguer-se na cadeira que impedia que a jovem pudesse ter qualquer tontura que a obrigasse a tombar, devido ao tão imenso nervosismo que a acometia. Aceitou-a, sentindo o veludo negro da luva afagar-lhe a mão. Seria a sua pele tão macia quanto aquela cobertura que a cobria? Almejava sentir o seu toque, a frieza que lhe era destinada.

E porque não a deixava ele de fitar? Começava a imaginar que poderia haver algo de errado com a sua ebúrnea face. Quiçá o rubor que fazia questão de não a abandonar. Inspirou fundo, evitando que tal acto se notasse. Necessitava de manter o controlo.

Ergueu-se, evitando cruzar o olhar fosse com quem fosse. O seu constrangimento era por demais óbvio e a última coisa de que precisava era que o seu austero pai se percebesse de tal, isso se não tivesse já reparado. Porventura, quando o pintor se retirasse, ouviria uma severa descompostura.

A mão de Amapoullo abandonou a sua, após se ter endireitado, o que lhe custou uma sagaz desilusão. Apesar do pouco à-vontade, desejava que aquela mão continuasse junto à sua, envolvendo-a protectoramente, apesar daquele perfil esbelto e elegante lhe fazer lembrar o mais perigoso predador da noite. E não era o que todos eles eram? Seres nascidos da pureza da noite, caçadores da Vida que se eternizava num último suspiro. Talvez fosse por isso que Raphael a abandonara, talvez…

O rubor desapareceu subitamente da face de Adamina, como se todo o sangue que lhe corria nas veias, e que nunca seria seu, tivesse sido irremediavelmente sugado. Outra vez a memória de Raphael… Por que não desaparecia ele do seu espírito? Acusá-la-ia de o trair por se sentir inevitavelmente presa ao negro olhar do pintor? E que moral tinha ele para a acusar? Fizera o mesmo, ou pior. Ele sim, apunhalara o seu imenso amor, quando ele se elevava ao expoente máximo. Raphael, simplesmente, assassinara-a.

- Senti-vos bem? – A voz suave e mergulhada em delicadeza do pintor interrompeu os pensamentos que a atacavam dia após dia sem descanso, estremecendo-a como faria uma mera brisa num álgido dia de Inverno. Adamina voltou o seu profundo olhar de safira para o enigmático vampiro, e depois fitou o pai de lado por segundos. Como sempre, a sua face não transparecia qualquer sentimento, que não fosse a reprovação.

- Sim, sinto. Perdoe-me o tempo que vos faço perder por entre as minhas divagações – murmurou, descaindo um pouco a cabeça para o lado, de formar a não captar o olhar de nenhum dos dois.

Apesar de Adamina não o poder ter visto, Amapoullo sorriu para si, após aquela resposta. Admirava tão bela e primorosa dama que se deixava cair na abolia de um sentimento. Pois ele sabia-o, sabia que tão triste alma não poderia assim ser sem nenhuma razão aparente. No entanto, isso também o apoquentava. Tão doce flor não deveria sangrar do coração.

sábado, 28 de junho de 2008

Capítulo II - O Retrato

3ª Parte

As palavras ficaram-lhe retidas na garganta, com entraves que nem ela saberia definir. Sentia o olhar do seu pai em si, recriminando-a austeramente pela sua falta de delicadeza, mas a sua atenção estava centrada no cavalheiro à sua frente. Nos seus olhos-obsidianas, que, fossem, de facto, pedras, dariam obras de joalharia de incalculável valor.

Encontrou, finalmente, voz, enrodilhada no torpor em que se vira submersa. - Igualmente, caro senhor. Não vos tomava por pintor.

O sorriso persistia, como de uma permanente sombra que lhe torcia a face numa máscara de beleza. Ainda mais beleza. - Fico extasiado por ter como musa tão doce dama. Acreditai quando digo que sois a mais bela donzela que tive a honra de pintar.

Cria que as suas faces não poderiam tornar-se mais rubras e, com medo de dizer algo errado, acenou apenas, desviando o olhar daqueles olhos penetrantes.

O seu pai elevou a voz. - Senhor Amapoullo; a minha filha, Adamina Doriane. - Antes que o pintor pudesse dizer algo, prosseguiu. - Espero que esteja pronto para começar, a Sala dos Retratos está preparada.

A Sala dos Retratos. Adamina sentiu um estremecimento percorrê-la, um prazer secreto de antecipação. Nunca fora autorizada a entrar na sala, onde eram pintados, ao longo de gerações, os retratos da família Doriane. Deslumbravam-na todas as sedas e veludos que ornavam as paredes figuradas nos quadros, quase tanto como as faces pálidas, elas mesmas semelhantes a tecidos, lisas e belas.

Oh, e na sala com tal pintor, tal artífice de mãos d'ouro, prata, pedras preciosas, que se dizia fazer com tal perícia retratos que eram como espelhos da alma.

Ficaria a sua alma gravada a tinta em tela?

sábado, 31 de maio de 2008

Capítulo II - O Retrato

2ª Parte

A campainha fez-se ouvir tenuemente vinda da distante entrada da Mansão. O seu coração sobressaltou-se com a estridência. O pintor havia chegado, sabia-o. Não tardaria a serviçal guiá-lo-ia até aquela ampla sala de estar, onde posaria horas e horas, mais do que seria permitido a qualquer ser humano, pois ela já não o era.

O seu espírito suspirou, enquanto os atentos ouvidos escutavam os simples sapatos de Amália a percorrer o corredor pálido onde ornamentos lhes acenavam soturnamente: retratos de antepassados, tapeçarias antigas de culturas mortas e armas já não utilizadas mas que de certo continuariam a deter um perigo mortal nas suas afiadas lâminas. Contudo, só os seus passos se ouviam, não mais, e isso dizia muito. O artista era um como eles.

Endireitou-se o mais que pôde na cadeira de estofos aveludados. Com certeza o seu pai quereria que se mostrasse digna do título que ostentavam.

Um leve bater à porta de carvalho fez-se anunciar e seu pai autorizou a entrada no seu tom sempre álgido. A criada abriu-a e comunicou que o senhor Patrick Amapoullo chegara. Desviou-se, dando-lhe espaço para entrar, com uma vénia servil.

O coração de Adamina parou momentaneamente para, de seguida, o seu batimento pulsar célere. Conseguiriam escutá-lo, quase a querer saltar-lhe do peito? Esperava sinceramente que não. Tentou inspirar calmamente e serenar a respiração.

O homem que entrara vestia-se de negro. Uma casaca comprida caía-lhe até perto dos joelhos e as luvas pretas ocultavam as mãos ebúrneas de sensíveis dedos. Era alto e os seus olhos negros como ébano possuíam um certo toque felino. O sorriso ténue, porém marcante, na face angelical, recordava-lhe o baile de alguns dias atrás. Era ele, o cavalheiro que a convidara para dançar e de quem fugira como uma donzela assustada, sem qualquer argumento justificativo.

Fez uma semi-vénia ao conde e aproximou-se para lhe beijar a mão. Um arrepio percorreu-a quando os seus olhos se cruzaram e os lábios do pintor tocaram levemente na sua mão.

- É um eterno prazer revê-la, jovem senhora – declarou, educadamente.

domingo, 27 de abril de 2008

Capitulo II - O Retrato

1ª Parte

Olhou desatentamente a luva que repousava no seu colo, e absteve-se de suspirar, sabendo que o seu pai não aprovaria tal acto.

- Já era altura de mandar pintar o teu retrato, - dissera-lhe, na noite anterior. Haviam passado dois dias desde o baile, desde que ela partira numa corrida apressada para longe do cavalheiro que a tomara nos braços para uma dança. - Mandei vir o melhor pintor de Praga, chegará amanhã.

A tradição de família que nunca compreendera, de pintar um retrato de cada membro, nunca, até agora, a havia transtornado - a si ainda não lhe fora pedido que posasse. Mas, naquele momento, enquanto esperava o pintor que seu pai chamara, Adamina passou a mão pelo cabelo sedoso, exasperadamente, irritada no seu âmago por ceder a tal ordem. Quanto tempo teria de suportar até o retrato estar pronto; quantas horas de prolongado tédio e (caso não fosse já um falecido ser) mortal aborrecimento?

Seu pai ordenara que vestisse veludo, porque fora de veludo que todos os membros da sua família haviam sido retratados. Assim, o vestido negro caía em pregas suaves em seu redor, enquanto aguardava. Lançou uma mirada aos quadros da Sala dos Retratos. Pinturas de seus antepassados olhavam-na aprovadoramente, com olhos gélidos e poses altivas. Prestou atenção, pela primeira vez, ao quadro de seu pai. Nunca se apercebera de quão bem representado ele estava, transparecendo a sua frieza mesmo através de simples tinta, mostrando, de forma quase real, a sua natureza de comando. Olhando para o retrato e o homem, diria que o primeiro era uma impressão do segundo.

Estremeceu inconscientemente ao ouvir as batidas na porta da sala, mas era a governanta com chá. O seu pai dispensou-a, sem uma palavra, mas Adamina percebeu: não iriam tomar nada enquanto não chegasse o pintor.

A sua mente vagueou, quase sem se aperceber, para o cavalheiro da noite do baile. Assustara-se com a capacidade dele para a atordoar, para a fazer sentir algo que não sentia há... tanto tempo. Todas as noites eram um suplício, repletas de calafrios de saudade e angústia, que abafava quando se encontrava com o pai ou qualquer outra companhia, esforçando-se por que não transparecessem. Mas aquele homem fizera com que sentisse de novo o aperto semi-doloroso mas cheio de prazer que tinha sempre que estava com Raphael. Oh, quem seria? Como lhe faria ele tal coisa?

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Capítulo I - O Pintor

9ª Parte
O fluído morno enrubesceu-lhe os lábios, cedendo-lhe um prazer sublime que nem os deuses sem gosto poderiam saborear. Os seus dedos magros e pálidos deslizaram por entre os negros fios de cabelo da sua vítima, afagando-os amavelmente, enquanto se banqueteava naquele doce mel que aos poucos desgastava os seus sentidos numa letargia morna.

Ao finalizar o seu passeio pelos inúmeros trilhos que o gosto sanguíneo poderia tomar, ergueu o rosto para o céu, permitindo que a sua língua absorvesse os resíduos dos seus lábios agora escarlates e quentes. O luar iluminou a perfeição que lhe fora tão generosamente oferecida, as linhas eternas que formavam a sua fronte sem ruga alguma.

Voltou a sua atenção para o gracioso corpo da donzela, que morto repousava nos seus braços. Abençoado fosse o seu sacrifício, pensou, com alguma ironia, enquanto sorria ao observar a sua face arredondada, os olhos semi-abertos que já nada fitavam para além do vazio que formava o tudo num colapso que se comprimiu em demasia.

Curvou-se e depositou-lhe um pequeno beijo na frieza que era já o seu invólucro. A vida era agora sua, por meros e escassos instantes que fosse. E nesses meros e escassos instantes muito tinha a fazer, o pincel clamava mais alto no seu estúdio, chamando-o até si, irresistivelmente. Mas antes, tinha outro assunto a tratar.

*

Aproximou-se da margem do apressado rio Vltava. Ainda nos seus braços a adormecida donzela, esperava pela sua sepultura incerta. Pousou-a no chão relvado, aqui e acolá ponteado por flores adormecidas. Faltava um último e delicado pormenor.

Com suavidade, levou um dos pulsos da morta à boca. As suas aguçadas e belas presas afagaram a fina pele que lhe cobria os vasos sanguíneos, enquanto os lábios sentiam as rudes linhas que tracejavam a sua pele. A pele “dela” nunca seria assim.

Por fim, rasgou-a com um gesto rápido. O suicídio era tão vulgar entre nobres jovens descontentes com o seu futuro noivo, ou perdidas de amor por alguém que as rejeitava…

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Capítulo I - O Pintor

8ª Parte

Ah, já sentia o rubro sangue, a translúcida pele de azuis veias sob os seus lábios - rubis em beijos! Foi percorrido por um frémito de arrebatamento, torturado pelo desejo de lançar suas mãos num pincel, de escorrer a sanguinolenta tinta pela paleta.

Portanto avançou, os seus pés mal pisando a gravilha que parecia abrir caminho ante si. O aroma das flores do jardim envolviam-no como seda invisível, albergando em si doçura tal que quase suspirou de êxtase. Mas o verdadeiro prazer ainda tardava, conquanto que não muito.

Cravou as unhas na palma das mãos, enquanto seguia o vulto que caminhava à sua frente. Conseguia cheirá-lo, agora. Uma mulher, exalando um perfume penetrante, ainda que doce. Sentia-o preenchê-lo, mas não completamente. Faltava-lhe algo, cria. Algo que rejeitaria o que fazia naquele momento, algo - ou alguém. Sentiu outro cheiro, algo que o eriçou, que o fez arder interiormente. Mas o que cheirava era apenas uma reminiscência do que ainda desejava para si.

Concentrou-se de novo na presa à sua frente. Os passos eram pesados, arrastados, como se carregasse em si um peso equiparável ao de Atlas. Óptimo. Encarregar-se-ia de a ajudar a sentir-se mais leve. Nunca Caronte deixara ninguém atravessar o seu rio carregado.

Antes ainda que a mulher ouvisse os seus passos, o seu vulto, não mais que uma sombra, abateu-se sobre ela. Antes ainda que ela conseguisse clamar por ajuda, ele já lhe cravara os dentes, num beijo último, no esbelto pescoço. Antes ainda que ela conseguisse vê-lo, estava morta. Definitivamente.

O sabor férreo do sangue enchia-o de sensações tão conhecidas como os seus pincéis, as suas pálidas telas, mas, contudo, tão estranhas para si como o correr ignóbil da vida em si. Oh, há quanto tempo não sentia o pulsar do coração. Durante alguns melancólicos momentos, contemplou, sem ver, o corpo exangue da sua vítima. Honrada, era como se deveria sentir, acaso pudesse. Nem todos eram tintas de perfeitos quadros.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

7ª Parte

Não poderia ali ficar, esperando que ela viesse de encontro a si e aos seus braços, na esperança de que num dedilhar de harpa os seus dedos se tocassem para um novo bailado que os embalaria até ao nascer da estrela diurna.

Caminhou, então, pensativo sobre a lassidão sorridente que lhe acenava dos belos rostos ansiosos do toque dos seus lábios. Não os desejava. Só aqueles ternos fios dourados clamavam por si, só aqueles olhos de safira o encantavam. Sim, desejava já aqueles lábios rubros, aquele frio que o aquecia...

Saiu para o jardim mergulhado nas trevas tão crescentes e abundantes. Os seus olhos tão ou mais negros que a noite percorreram-no, trespassando hipócritas fontes angelicais e densas sebes que se espalhavam, formando trilhos que encaminhavam os convidados para recônditos distantes. Recônditos inesperadamente perigosos. Um ser (homem ou mulher, o que interessava?) palmilhava-o, afastando-se na imensidão que era o seu eterno domínio. Afastando-se do que não quereria perder tão cedo.

Seguiu-o com passos leves. As suas veias palpitavam por ele numa ânsia retumbante. Banhar os lábios na vida que escorria fresca para si seria um prazer. E o que pintaria ele nessa noite?

A sua consciência desvaneceu-se para algures. Uma bela jovem limpava as intimas lágrimas escarlates que se vertiam impiedosas, de desgosto, de raiva, de desprazer...

Hesitante voltou-se para trás, porém não a encontraria. E se encontrasse, a donzela fugiria novamente. Escapar-se-ia dos seus braços aquela frágil papoila... Sim, papoilas! Um enorme campo de papoilas vermelhas, tal como as suas doces lágrimas ou os seus deleitosos lábios. Tão efémeras quanto ela. Como se deliciaria o seu pincel ao delinear aquela forma num canto triste de rouxinol!

Reencaminhou-se novamente pelo trilho que serpenteava na escuridão. Nos seus lábios bailava, agora, um sedutor sorriso, mais que mortal, mais que felino. Um sorriso de belo anjo caído.

sábado, 22 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

6ª Parte

A donzela afastava-se, bela e misteriosa Cinderela, da qual nem o sapatinho tinha como pista. Ainda sentia a sua mão delicada, de finos dedos translúcidos, as veias azuis sobressaindo delicadamente, como se sentindo saudades do sangue batendo com o fulgor da adrenalina, do desejo, da raiva.

Temia-o? Na sua mente surgiu a imagem de um corpo exangue, jazendo no chão pútrido de uma qualquer ruela da majestosa Praga, sem uma gota a raiar-lhe a pele descolorada. Ah, como a sua mão ansiava pelo pincel, pela tela em branco tornada cor, sonho, realidade pintada em sangues! Abanou a cabeça; ainda não estava na hora.

Deslizou pelo salão, sorrindo delicada e deslumbrantemente a damas, tornando-as capazes, seres nocturnos e aveludados, de suspirar de angústia desejosa. De inveja. De curiosidade. Porque raros eram os que sabiam já o seu nome, embora cresse que, ao final da noite, os murmúrios inquiridores já houvessem percorrido, por inteiro, o local.

Não lhe apetecia dançar mais, iria apenas conspurcar-se ao tocar numa qualquer mulher lasciva, de mãos que ambicionavam mais do que aquilo que desejava dar. Passou a língua pelos dentes, pensativamente, enquanto se encostava a uma coluna, encobrindo-se nas sombras, fitando a multidão pálida. Os olhos de obsidiana não viam, porém, os seres da sua raça, mas pedaços de quadros transpostos para o agora, efervescentes figuras personificando músicas, acordes insonoros de violoncelos de cordas soltas. Sim, e potros palmilhavam de pegadas ainda não ferradas as paisagens de mares vermelhos.

Sentiu-se corroído pelo desejo mórbido, e por pouco não cravou os dentes no criado que se roçou em si, propositadamente, enquanto transportava bebidas. Raios. Onde estaria a tal rapariga?

domingo, 16 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

5ª Parte

E como eram suaves os seus passos, os seus revolteares intensos por entre os violinos que se enterneciam ao som de uma valsa fúnebre!

Adamina tentou perscrutar aquele negro enigmático que se antevia por entre pestanas densas que poucas vezes se cerravam. Perguntava-se quem seria. Nunca antes se cruzara com o cavalheiro desconhecido. Pertenceria a um outro país?

- Nunca antes os nossos olhares se cruzaram pois o destino o impediu – murmurou-lhe o jovem com um leve mas significativo sorriso, dando a conhecer os pensamentos a que a jovem não dera voz.

O pouco sangue que as suas veias transportavam dera-lhe um aspecto mais vivo, quando a sua face corou um pouco, apesar de ser o máximo que a sua palidez oferecia. O homem de negro riu-se baixinho sem deixar de guiá-la delicadamente pelo salão.

- O senhor...

- Não – declarou, sem deixar de observá-la. – Simplesmente o pressenti no seu tão atento olhar. Atento e belo.

No preciso momento em que Adamina desviou o olhar, a música parou. Há quanto tempo um elogio aos seus olhos não revibrava no seu espírito magoado? Oh! Ela sabia quantas eram as horas, quantos eram os dias, quantas eram as semanas infindáveis... batiam no seu peito aquelas chagas abertas.

O homem fitou incrédulo a reacção inesperada. A intenção das suas meigas palavras tinha ido além do previsto. Mas não percebia o porquê.

- Por favor, perdoai-me – implorou. A mão da jovem continuava junto à sua, no entanto, sentia que seria por pouco mais tempo. – Não quis ofendê-la.

- Não me ofendeu – murmurou Adamina com um vago sorriso que desfalecia. – Perdoe-me o senhor a minha indelicadeza. Com a sua licença.

A sua mão largou por fim a do belo homem, que se retraiu com uma desilusão educada. Com uma pequena vénia de despedida, Adamina afastou-se, por entre os pares que antes bailavam a sua dança fluida, para uma proximidade indefinida de encontro à sua solidão.

terça-feira, 11 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

4ª Parte

O ruído do salão, pejado de seres pálidos, inumanos, figuras saídas de sonhos - ou pesadelos -, bafejou-lhe o delicado rosto, como um suspiro de um amante. Fechou, momentaneamente, os olhos, enquanto, em conjunto com o seu pai, era apresentada aos presentes, por um mordomo de ar empertigado, que quase se poderia imaginar empoeirado.

Uma mão segurou a sua, delicadamente, o que a fez erguer as pálpebras, destapando as formosas íris para o sonoro ambiente, desejando sentir o silêncio e a tranquilidade, tomando-os nos seus braços ansiosamente, na sua solidão. Ela, o sossego e a escuridão.

- Senti-vos bem, senhora? - À sua frente, segurando-lhe a mão enluvada, com a preocupação cintilando-lhe no carvão dos olhos, encontrava-se um homem elegante, de brilhantes cabelos negros. O seu coração contraiu-se numa recordação surda de Raphael. - Precisais de um copo de água?

Adamina abanou a cabeça, suavemente, fazendo balouçar os fios de luz dourada. O cavalheiro em frente a si sorriu, curvando-se numa vénia graciosa, beijando-lhe, docemente, a luva, ostentando como ornamento um sorriso feito de pedaços de lua.

- Permitis-me então que vos convide para uma dança? - Na pista, os pares terminavam os seus volteares sincronizados, por entre aplausos que abafavam os acordes últimos da melodia que se afigurava, à dama, deslocada, sem se adequar ao negro e escarlate das vestes da maioria dos presentes.

Ainda assim, acedeu ao pedido do senhor - que não aparentava ser muito mais velho que ela própria. Mantendo os lábios distendidos num cumprimentar ao prazer, ele conduziu-a para o centro do salão, onde nova música começava a tomar lugar. Com uma delicadeza extrema, ele colocou uma mão na sua cintura, apertando a outra na sua, quase como se não houvesse outra salvação daquele mar de corpos senão o toque da jovem dama.

E era num mar de corpos que se moviam, ondulantes como ondas coordenadas do mesmo escuro e tenebroso oceano, numa elegância inimaginável a olhos humanos.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

3ª Parte

Fechou as cortinas aveludadas, antes do interior do coche sentir uma pequena mas inamovível inclinação para cima, como se tentasse elevar-se até ao céu nocturno. E como desejava poder tocar-lhe, ou talvez cair na latente harmonia dos anjos! No entanto, aquilo só uma coisa significava: estavam a chegar ao seu derradeiro destino.

Um alto e austero palácio espera-los-ia no fim da calçada intrépida, um retrato erguido de uma qualquer imagem aterrorizante. Ou seria a sua alma que a iludia e criava aquela figura que parecia querer devorá-la avidamente? Talvez fosse, definitivamente, só isso.

O trote dos cavalos foi abrandando, e o coche parou por fim com um solavanco pouco suave. Um dos cocheiros apressou-se a abrir a porta, veneradamente, para que descessem. Seu pai segurou-lhe na pálida mão e Adamina pôde sentir uma frieza tão igual mas tão diferente da sua. Gostaria que a sua mãe estivesse presente para a amparar na sua solidão. Perdera a única pessoa que realmente detinha carinho por si, perdera Raphael...

- Sorri – ordenou-lhe seu pai, guiando-a para as altas portas do palácio de braços dados, com passadas lentas e elegantes dignas da alta nobreza a que eles pertenciam.

Adamina tentou, mas a única coisa que sentiu foi um esgar que lhe feriu a face e lhe levou lágrimas contidas aos olhos. Não podia continuar assim para toda a eternidade, em parte o seu pai tinha razão. E lá bem no fundo, sabia que ele se preocupava consigo.

As portas abertas receberam-os solenemente, apesar de serem muitas as luzes que lhes iluminava a serpenteante carpete vermelha que os levaria ao grande salão onde o anfitrião e os convidados aguardavam a chegada dos restantes.

Caminharam, olhando em frente de forma segura. Ou assim fazia seu pai. Adamina observava os retratos que acompanhavam a sua passagem. Sentia-os diferentes do normal. Eram densos. Tinham alma...

Os seus pés pararam de caminhar, hipnotizada pelo labirinto de imagens que se espalhavam ordenada e hierarquicamente por uma inclinada e verde colina. As suas vestes eram antigas, provindas de séculos passados, algures perdidos nos confins de Belém ou Jerusalém. No cimo da pequena ladeira uma pequena e raquítica cabana erguia-se insegura no frio gélido que se passeava sem entraves por todos os seus interstícios de pobreza. No seu interior, uma mulher de beleza simples mas delicada guardava nos braços um frágil embrulho em suaves e brancos panos de linho, envolvido. Uma mãozinha erguia-se do seu interior, tentando alcançar alguns dos fios de cabelo que se escapavam do véu que os guardava. Por cima da cabana uma luz reluzia no seu esplendor divino. Mas que divino seria aquele? O seu reluzir sentia-se suavemente luciferino.

Tentou aproximar-se para observar com maior pormenor aquela grande tela emoldurada. Mas o braço de seu pai impediu-a, relembrando-lhe de onde estava, chamando-a a si e ao seu mundo que nem deveria ser seu.

- Desculpe – murmurou, mas talvez se dirigisse ao menino Jesus na sua cabana friorenta, e não ao pai. Fora a ele que perscrutara sem permissão, nos seus perfeitos pormenores. Merecia o seu pedido de perdão.

Sentiu-se a ser semi-arrastada por aquele corredor largo de paredes pálidas. Inexoravelmente, a cena sagrada afastava-se de si, assim como Ele o fizera.

sábado, 1 de março de 2008

Capítulo I - O Pintor

2ª Parte

Pela janela do coche, o mundo escoava-se em tons cinza, preso pelos traços das lâmpadas a óleo que iluminavam as ruas degradadas e sujas, repletas da imundície que inundava o pavimento. Poucas eram as pessoas que ainda percorriam as ruas, a maioria coberta com capas como se para se proteger do que a rodeava, para se proteger do mundo.

Com um suspiro, desviou os olhos do vidro. Cada face que avistava, por mais suja, desfigurada, por mais retorcida pela dor ou - mais raramente - pelo êxtase que estivesse, a recordava do seu amante fugido. Mordeu o rúbeo lábio inferior, quase sentindo as salgadas gotas inundar os seus cativantes olhos. Era um ser das trevas, afinal de contas. Não se permitiria chorar. Mas ele abandonara-a, naquela noite em que o esperara tão avidamente, em que o desejara, mais que nunca, nos seus pálidos braços. Traíra-a, partindo com outra mulher. Haviam ambos desaparecido na mesma noite, e ela não duvidava que estavam juntos, agora, embalando-se sob o mesmo veludo bordado a estrelas.

Suspirou, amarguradamente, um suspiro que faria corações humanos estremecer de prazer. Como ela já estremecera, abraçada pelo seu amado Raphael, que ousara dizer, com uma aterradora certeza, que a protegeria ad infinitum. Até ao final dos tempos, dissera, com a sua doce voz. E, agora, tudo isso se dissolvera.

Abstraindo-se do cenário lá fora, fitou o interior forrado de veludo do coche. O seu pai não a olhava, os seus frios olhos azuis mirando as sombras no exterior. Estava, como sempre, impecavelmente vestido e penteado; ninguém teria dúvidas quanto ao facto de serem parentes. Ela, contudo, tinha-as, por vezes. Incompreendia a rigidez quase militar dele, o seu modo gélido de se dirigir a todos, a forma como punia os que lhe desobedeciam. Era como o gelo, de uma beleza assassina. Sim, porque, até ela o admitia, era belo, deslumbrante, até, e qualquer mortal, homem ou mulher, perdia o fôlego ao pôr os olhos na sua figura esbelta, nos seus compridos cabelos que lembravam uma cortina de fios de ouro, os olhos diamantes azulados.

- Adamina? - Não a olhara sequer.

- Sim, pai?

- Sabes o que espero de ti esta noite, não sabes?

- Sim, pai. - O seu tom era submisso; de nada lhe valeria contrariá-lo.

Ela sabia o que ele esperava dela, claro. Que não o envergonhasse, que não referisse o facto de ter amado um humano, e que, sobretudo, tentasse encontrar um noivo. O oposto de Raphael: um vampiro.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Capítulo I - O Pintor

1ª Parte

Os seus olhos abriram-se num repente, por entre a suave escuridão do aposento. Um aperto estrangulara-lhe o coração numa rajada fria que lhe arrepiou os cabelos.

Levantou-se ansiosa da sua cadeira e aproximou-se da janela envidraçada que a deixava perscrutar a noite negra, encoberta num lençol de nuvens obscuras. Abraçou-se a si mesma, sentindo o veludo suave do seu vestido. O seu rosto pálido de beleza estava marcado pela preocupação.

Onde estava ele? Porque se demorava?

*

O pôr-do-sol marcava-se no horizonte, vertendo-se por ele até, por fim, desaparecer. Um longo mês decorrera desde que o seu coração se destroçara pedaço por pedaço. Mas a culpa fora sua. Como não suspeitara? Era um humano, como todos os outros. Iludira-se, contra tudo e todos para repousar as seu lado e sentir os seus ternos beijos numa pele já e para sempre gélida. No entanto, fora vão o amor que florescera dentro do seu peito. Raphael desaparecera adormecido no embalo dos braços de outrem.

Uma lágrima escarlate de dor e mágoa deixou-se escorregar lentamente, acompanhando a descida do Sol no seu esplendor de decadência. Simplesmente, desapareceu...

Três bateres na porta interromperam os seus pensares, levando-a a limpar a lágrima fugaz que se tinha escapulido, com um lenço de algodão rendilhado.

- Sim? – Perguntou, voltando-se para trás.

A porta abriu-se silenciosamente dando a revelar quem a perturbara. Era uma das raparigas da criadagem. A sua tez era tão pálida quanto a sua e os seus trajes eram simples mas limpos, como o seu pai exigia. Todos tinham que obedecer às mais severas ordens, e quem não o fizesse, sofreria as consequências. Tal como lhe acontecera.

- Menina Adamina, o seu pai pergunta se já se encontra pronta. E pede para que desça, o coche já chegou para levar vossas senhorias ao banquete do Grão-duque.

- Sim, desço de imediato – respondeu vagamente Adamina, voltando a olhar pela janela. Fora ali que esperara por ele...

Respirou fundo. Não podia continuar a mergulhar nas profundidades do que já não poderia existir, do que se esvaíra pelos interstícios do engano e da traição.

Pegou na sua pequena mala de mão relutantemente. O Sol tinha desaparecido.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Prólogo

Nas ruas de Praga medieval.

Uma sombra deslizou pelo beco.

Sentiu-se estremecer, entorpecido pelo medo, mas tentou mentalizar-se de que nada o perseguia. Em breve estaria em casa, com sua doce Adamina nos braços. Um sorriso surgiu-lhe nos lábios, e tornou-se mais fácil enfrentar a escuridão que o rodeava. Nunca tivera medo das trevas, seria irónico começar a temê-las agora.

Mais uns minutos, não tardaria. Outro arrepio, desta vez mais profundo. Estava a ser seguido, decerto. Os tijolos da parede da casa ao seu lado ensombraram-se; fitou o céu. As estrelas, brilhantes lanternas cintilantes, e a lua, com a sua circularidade perfeita, foram cobertas por nuvens escuras, escondendo a iluminação natural. Como prenúncio da destruição que se adivinhava.

Prevendo-a, em parte, começou a correr, cegamente, os seus sentidos iludidos pelo terror, o coração embatendo, com força, no peito. Sabendo que de nada lhe valeria tentar enfrentar o que o perseguia, fugir era a única forma de sobreviver.

Adamina. Uma imagem de uma jovem assaltou-o, como aviso final. Não escaparia, sabia-o agora, ainda que não deixasse de correr. Tropeçou, continuou. Era, inevitavelmente, a presa. E o caçador não se encontrava muito atrás. Não era humanamente possível enfrentá-lo.

A noite era sombras, e as sombras eram o seu inimigo, e os segundos pareciam roubar-lhe, cada vez mais, o fôlego.

Estacou, ao faltarem-lhe, definitivamente, as forças. Apenas via, à sua frente, um torvelinho de linhas negras. Apoiando-se à parede de uma casa, lutou por ar.

Uma figura alongou-se à sua frente, ganhando forma humana. Era, contudo, mais alto do que seria de supor de um humano. Sim, porque não era um humano, e ele sabia-o. Mas a sua doce Adamina também não o era, e, ainda assim, ele amava-a.

O vulto envergava vestes negras, mais tenebrosas que as sombras que os rodeavam, tão escuras quanto o seu cabelo. Este contrastava com a pele. Oh, quão pálida! Recordava-lhe a da sua amada, mas Adamina tinha cabelos de um loiro brilhante, estrelado.

Suplicar. - Não me mates. Por favor.

Como resposta, o vampiro à sua frente aproximou-se com movimentos felinos. Lânguidamente, encostou a sua boca, de carnudos lábios vermelhos, ao seu pescoço.

Num murmúrio sedutor, antes de o morder, sussurrou-lhe ao ouvido. - Serás a tinta mais rubra da minha paleta.