terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Capítulo II - O Retrato

7ª Parte

Antes que o fôlego de que não precisava a abandonasse, seu sisudo pai falou, a voz cortando rajadas gélidas de ar pela sala perdida no tempo. — Ela saberá comportar-se de modo a aquietar-se. — O olhar cru pousou sobre a filha, e Adamina sentiu o coração que não batia estremecer. — Não é um qualquer animal de rua com o sangue vivo nas veias. — Era assim que se referia a humanos.

O pintor pareceu não vacilar, e dirigiu ao senhor uma vénia singela e de reconhecimento. — É certo, seria impossível encontrar beleza tal entre os homens, senhor. Mas ser-se um ser da Noite não é fenecer completamente para o mundo, como estou certo que a vossa sabedoria compreenderá, e a donzela é pois jovem e irrequieta como é próprio da idade.

A ousadia da sua voz era apenas comparada com a das suas palavras, que pareciam ignorar a sua presença. E como preferiria estar em outro lugar, se no seu quarto estaria mais segura dos olhares entre aqueles dois seres argutos e de almas calculistas, cada um desejando algo diferente para si. Oh, doce Raphael, que se perdera para ela, com as palavras meigas de salvador cavaleiro em branco corcel.

Susteve-se na cadeira: seu pai acedia; um aceno seco e desprovido de compreensão, mas um aceno. — Ser-vos-á cedida uma hora a sós, senhor. Nada mais. — Se não a disse, não faltou do seu tom sombrio a ameaça desvelada e austera. Uma promessa, Adamina garantiria.

Amapoullo sorria, se pouco sério não pôde distinguir, à luz do candeeiro, mas como o faria em frente ao homem que o ameaçava com tamanha clareza? O sorriso alargou-se quando a porta se fechou, com firmeza, e a solidão que os rodeava embraçou-a de imediato, sussurrando-lhe um arrepio.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Capítulo II - O Retrato

6ª Parte

Adamina foi percorrida por um arrepio, vindo algures de um ponto remoto da sua alma, tão mergulhada dentro de um coração encerrado ao mundo. Respirou profundamente, apesar de querer que o acto passasse despercebido a seu pai e ao estranho pintor que a observava e estudava, de fino pincel erguido em direcção à tela ainda em branco.

Deixou que a atenção se perdesse na chama clara do candeeiro que tremeluzia e se agitava nas vagas de uma brisa inexistente, dançando o bailado que na noite passada dançara com Amapoullo, enquanto o sorriso se mantinha pétreo nos lábios rubros que lembravam sangue.

Agora, adoraria que aquele retrato fosse pintado à luz de um Sol primaveril, ao som tão agudo e estridente que as aves canoras conseguiam imitar, pouco sinfónico mas alegre e vivo, tal como ela almejava estar.

- Senhora, por favor, mantenha o seu tão doce sorriso. Só assim a sua esbelta figura resplendecerá neste simples pedaço de tela.

Corou, sem se atrever a fitar o pintor, obrigando os cantos dos lábios a erguerem-se um pouco, num esforço que parecia superar tudo. Porquê fingir, se não era sua vontade sorrir? As mãos que repousavam no colo, apertaram-se uma de encontro à outra, tensas daquela atmosfera que ousara conhecer. Sentia múltiplos olhares cravarem-se em si, de familiares há muito caídos nas garras do tempo que se ergue sobre todos. Julgavam-na, disso não havia qualquer dúvida e se a condenavam, nenhum se atrevia a proferir pena perpétua. E, por alguma razão, o seu pai parecia ser o que mais a sentenciava, tanto em retrato, como em figura viva. Ou morta.

- Perdoai-me a ousadia, senhor, mas importai-vos que fique a sós com a vossa filha? Sinto-a inquieta e um modelo assim é impossível de se pintar na sua perfeita elegância.

A estupefacção espalhou-se pela face pálida de Adamina, que desta vez atreveu-se a olhar do pintor para o pai, com receio da reacção deste último. Aquilo era um pedido mais que ousado.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Capítulo II - O Pintor

5ª Parte

Adamina fechou os olhos ao tomar lugar na cadeira onde seria retratada; veludo carmim, debruado a ouro, com belas franjas que drapejavam até ao chão marmóreo. Sentia-se inibida em sua casa, e a culpa era, pois, da presença de Amapoullo. Era ele que fazia fraquejar as suas pernas, era ele que fazia com que o tempo esticasse e encolhesse a seu bel-prazer, era ele que sorria candidamente e que a hipnotizava. Oh, belos olhos negros da cor do fim do mundo.

— Senhora, poderia pedir-vos que vos sentásseis encarando o candeeiro? — A sua voz aveludada deslizava por si e arrepiava-a. — Gostaria de ver vossa excelsa face iluminada.

Sem palavra, Adamina aquiesceu, com um ínfimo suspiro. Rodou no lugar para receber a luz no rosto. Sentisse frio, diria que era por isso que tremia. Mal reparou em seu pai, fitando-os austeramente, de corpo hirto e direito, os olhos obscurecidos pela sombra onde se encontrava. Naquele momento sentiu uma indecisão apoderar-se de si. Metade do seu ser queria que o pai permanecesse onde estava, que não se afastasse dali, que a não a deixasse só com aquele ser, aquele encantador. Tinha medo, sabia-o, mas não compreendia a razão. No seu âmago, contudo, queria que o pai os deixasse, que partisse, que não voltasse, queria ser tomada nos braços níveos e maravilhosamente frios do homem que espalhava as tintas pela paleta, o cavalete montado à sua frente, o sorriso perfeito nos perfeitos lábios.

Conseguiu forçar os seus olhos a moverem-se, hesitantes, a olharem a sala que sempre quisera conhecer mas que, naquele momento, se eclipsara da sua atenção, tão pouco importante quando comparada com o soberbo ser diante de si. Os retratos olhavam-na do alto, com feições tão altivas quanto a do seu pai, tão belas quanto a sua. Nenhum dos posantes que emprestavam o corpo às pinturas sorria; era como uma severidade presente e constante que percorria a sala. Não ousou, ela mesma, sorrir.

Contudo, o artista tinha outra vontade. — Senhora, dar-me-ia o prazer de sorrir?

Pensou que o seu pai interviria para o impedir de lhe pedir tal coisa, que tal não se adequaria à Sala dos Retratos, mas ele permaneceu silencioso e sisudo e Adamina sorriu, ou tentou fazê-lo. Emprestou os seus dentes à luz, ergueu os cantos dos lábios, tentou até fingir alegria, mas para um pintor, cuja arte mostra a alma, uma fachada não serviria.