terça-feira, 19 de maio de 2009

Capítulo II - O Retrato

6ª Parte

Adamina foi percorrida por um arrepio, vindo algures de um ponto remoto da sua alma, tão mergulhada dentro de um coração encerrado ao mundo. Respirou profundamente, apesar de querer que o acto passasse despercebido a seu pai e ao estranho pintor que a observava e estudava, de fino pincel erguido em direcção à tela ainda em branco.

Deixou que a atenção se perdesse na chama clara do candeeiro que tremeluzia e se agitava nas vagas de uma brisa inexistente, dançando o bailado que na noite passada dançara com Amapoullo, enquanto o sorriso se mantinha pétreo nos lábios rubros que lembravam sangue.

Agora, adoraria que aquele retrato fosse pintado à luz de um Sol primaveril, ao som tão agudo e estridente que as aves canoras conseguiam imitar, pouco sinfónico mas alegre e vivo, tal como ela almejava estar.

- Senhora, por favor, mantenha o seu tão doce sorriso. Só assim a sua esbelta figura resplendecerá neste simples pedaço de tela.

Corou, sem se atrever a fitar o pintor, obrigando os cantos dos lábios a erguerem-se um pouco, num esforço que parecia superar tudo. Porquê fingir, se não era sua vontade sorrir? As mãos que repousavam no colo, apertaram-se uma de encontro à outra, tensas daquela atmosfera que ousara conhecer. Sentia múltiplos olhares cravarem-se em si, de familiares há muito caídos nas garras do tempo que se ergue sobre todos. Julgavam-na, disso não havia qualquer dúvida e se a condenavam, nenhum se atrevia a proferir pena perpétua. E, por alguma razão, o seu pai parecia ser o que mais a sentenciava, tanto em retrato, como em figura viva. Ou morta.

- Perdoai-me a ousadia, senhor, mas importai-vos que fique a sós com a vossa filha? Sinto-a inquieta e um modelo assim é impossível de se pintar na sua perfeita elegância.

A estupefacção espalhou-se pela face pálida de Adamina, que desta vez atreveu-se a olhar do pintor para o pai, com receio da reacção deste último. Aquilo era um pedido mais que ousado.